quarta-feira, 21 de abril de 2010

Entrevista com Nelson Coelho de Castro falando sobre seu novo CD, Lua Caiada


O compositor Nelson Coelho de Castro está lançando seu novo CD. Em entrevista ao Odara Blog, ele revela detalhes da produção deste novo trabalho, produzido com a chancela do Programa Petrobras Cultural e que está sendo lançado no próximo dia 7 de maio, em Porto Alegre, no Salão de Atos da UFRGS. Vamos aos principais trechos:

O primeiro LP continua:

"Com o lançamento deste CD, recupero uma emoção que se mantém ilesa. Lá no vinil - “Juntos”, de 1981, (meu primeiro disco) eu arrisquei descrever para aquele encarte uma singela reminiscência. O texto falava sobre as cores dos selos do LPs... cor de vinho, preto ou azul marinho. Depois, dos cantores e cantoras, eternamente dentro dos fonogramas, e de como ficava admirado pelo mistério daquilo acontecer: o brilho da negra esfera no prato, o verde musgo da estampa Odeon, a agulha sobre os sulcos e a voz de Anísio Silva entrando na sala para meu pai dançar com minha mãe. Naquele arrazoado, beirando pieguice, nem falei das capas, principalmente desta do Anísio, 1959, com ele, moço e muito bonito, de colete, exibindo um bigode David Niven, posando com o queixo apoiado entre o indicador e o polegar. Sei que foi bem aí da música me apanhar para sempre e eu não tinha seis anos, tinha cinco.
Em fevereiro deste ano, quando recebi o CD recém vindo da fábrica, replicou aquele estremecimento e senti que nada daquele espanto havia secado. Mesmo que hoje os discos sejam engolidos pelo player ou nem mais existam como mídia física, para mim sempre haverá este mistério dos cantores e cantoras, sem cronos, num suporte qualquer, que, num zás, poderão preencher com suas canções uma pequena sala, a web planetária ou o ego/fone dum Ipod. Então, ao anunciar este novo trabalho, aos 56 anos, aquele menino pasmo emerge e eu consinto. Não poderia recusar este encantamento do qual faço parte e que justifica os meus quase 30 anos de função."

Da concepção:

"Neste CD “Lua Caiada” busquei uma unidade que quase sempre, por paixão e por desatento, preteri. Nos discos passados, as músicas que eu selecionava na hora de gravar, às vezes, eram as que estavam mais próximas e daí, as mais “púberes” ganhavam pelo viço. Não importando o gênero, elas se misturavam com as que estavam na espera ou mesmo com as dispersas no tempo. Isto deixou alguns discos, principalmente aqueles que foram registros de intervalos longos sem gravar, como um punhado de balas sortidas e, mesmo sendo essas e esses a minha cara, a chamada “unidade estética” residia apenas aí. A “uniformidade” aguardada, (in)conscientemente subestimada, ia pro brejo. Por sorte, desta vez, não foi aflitiva a decisão de buscar uma unidade, mesmo achando que sentiria alguma culpa por ser um desnaturado e deixar “de fora” uma canção. Mesmo esta sendo díspar. O que veio a calhar foi das canções eleitas não serem primas distantes. Penso que cheguei há dois passos da tal coesão."

Dos arranjos:

"Nos meus discos anteriores, os arranjos das músicas eu deixava para fazer no estúdio com o auxílio dos instrumentistas que já me acompanhavam nos shows. Mostrava para eles as canções e também uma meia dúzia de frases e ideias musicais que seriam utilizadas ou não. O restante, só era concebido na hora de gravar. Muitas vezes, os resultados foram surpreendentes. Noutras, a imagens propostas se apartavam um pouco das originais. Mesmo assim, eu gostava disso, dessa coisa a partir da contingência, do momento parindo e as gravações sendo feitas de modo “take” ao vivo. As canções ficavam “quentes”, com uma pegada de grupo, de banda e não de simplesmente músicos acompanhantes arregimentados para tal. Tive sempre a sorte de contar com grandes músicos nestas ocasiões. Generosos e amigos, com eles a coisa sempre fluiu com proveito e muito aprendi.
Desta vez, por pouco que não encaro um receio do qual eu sempre ladeava. Era o de contratar um arranjador que fizesse a carpintaria das canções. Um embaraço me batia, pois a empatia ou a afinidade com o arranjador teria que ser naturalmente construída. Senão, ao encomendar os arranjos, o resultado poderia soar remoto. Ilustro a sestrosa coisa. É que quando eu escutava algum disco, por exemplo, de compositor/cantor, (e, se um destes produzidos com arranjos encomendados) observava também que, não poucos, soavam dessemelhantes à obra autoral do artista. Arranjadores e compositores são casamentos raros. Temia por isso e como tempo drenava rápido demais, abandonei a idéia. No próximo, vou encarar. A figura dos arranjadores na MPB é basilar.
Decidi, então, eu mesmo botar a mão na massa. Sendo o projeto financiado pela Petrobras, consegui realizar a pré-produção do disco. Começou no home estúdio do músico Mario Carvalho. Experimentamos algumas levadas, timbres e gravamos demos. Depois, passei a compor as frases das introduções, das passagens e dos contracantos. Assim fiz para todas as canções. A última etapa, antes de gravar, foi a dos ensaios com a banda de base.
Eu estudei violão clássico, lá pelos anos 70. Então lia e escrevia música. Como passei logo a compor música popular, acabei abandonando, infelizmente, a escrita e a leitura musical por dolo e ócio. “Deslembrado”, pedi um grande favor ao Pedrinho Franco. Ele estudava perto da minha antiga casa, aqui em Porto Alegre. De tarde, depois da aula, ele ia para lá. Lápis, borracha e caderno de pentagrama na mesa da sala, uma jarra de suco de uva para ele, um bule de café para mim. Houve uns três encontros com ele colocando na pauta o que eu lhe solfejava, assobiava ou ditava. Acurado, ele pegava o violão e tocava pra eu saber se era aquilo mesmo. E era. E foi aquilo tudo parar no Cd. Pedrinho ainda colaborou nas cifras e como copista.
Uma experiência doida de linda é essa, agora, com o disco recém parido, de escutar exatamente o que eu havia imaginado. Obrigado, Pedrinho. Prometo estudar."

Das letras:

"É esfolar a imprecisão quando me arrisco a responder uma pergunta recorrente aos compositores: primeiro a letra, a música depois ou vem “tudo/junto/incluído/de uma vez”? Essa coisa doida é toda doida coisa. Depois de 30 anos fazendo isso, tudo está entranhado que se torna difícil aclarar. Bueno. Um dia é uma palavra que acende a música. Noutro, uma fortuita melodia me aborda e cobra um verso. Noutro ainda, apenas um acorde faz borbotar a hemorragia, quase sempre depois que levo um soco no baço ou da vida, da esquina, da cidade, do país etc... Mas rola também o deserto brabo e daí... nasce nada. E isso pode perdurar ao medo.Existem canções que se querem urgentes, expeditas e se admitem logo independentes do compositor. Tem as de encomendas, com seus prazos inspiradores ou sufocantes. Posso ir mais além, para dizer que há canções que não se deixam parir assim tão céleres. Solicitam-se caprichosas por maturação e algum dengo. Outras são noviças, tenras, e desta vez, é o compositor que não quer, ou não admite, o desmame. É para ficar o maior tempo possível perto delas, pois sabe, se prontas, elas criam asas e se alçam. Gosto de todas estas formas. Até daquelas, e são muitas, que se sabe que irão parar na amnésia.
O que sucedeu com as canções que vinha selecionando para este Cd foi das músicas se apresentarem bem antes das letras. Um ou outro verso, quando vinha, vinha débil ou fraturado. Às vezes, um achava de emanar, mas no máximo assegurava o assunto da canção. Muitas das palavras, como ferramentas, suportavam apenas o ônus para que eu pudesse memorizar a melodia ou um acorde específico e só. E cada vez mais as harmonias chegavam sem as letras. Trabalhava a música, pensava no arranjo, nos instrumentos, ensaiava com os músicos, mas e as letras? Não dei muita bola. Na hora vai rolar, me lograva.
O engraçado, ou melhor, a ironia, é que eu me achava mais apto em fazer textos e a música, em mim, sempre foi e será produzida instintivamente. Minha relação com o fluxo do pensamento escrito me acompanha faz tempo. E este, bem na hora do trabalho, se mandou lá para não sei donde e sem aviso prévio.
E chegou o e-mail com a agenda do estúdio: dia tal vão começa as gravações das bases. Provoquei, sem rubor algum, cenas hilárias. Os músicos riam. Eu cantando a “voz guia” das canções e estas abarrotadas de palavras inventadas na hora, versos excêntricos e fonemas sem pé nem cabeça. E foi assim em quase todas as gravações e nada das letras, uma doidaria.
Eu passava os dias e as noites num misto de estóico e prazeroso empenho na garimpagem de palavras, de fabulações, de emoções recônditas ou ainda frescas. O pânico era de que a datas do cronograma do projeto já acenavam com um sinal rubro. Minha acuidade vadia na escolha dos versos e das palavras fazia o tempo escoar-se
rápido por demais. Como compositor, continuamente desguiei da afetação do rigor que gessa. Entendo que rigorosidade é uma falsa senhora e o rigorista esconde um tenso narciso. A arte do compositor popular é de outra beira e, para continuar no chiste, a perfeição é uma meta defendida pelo Gilberto Gil seus outros grandes pares.

As parcerias, com Bebeto Alves e Antônio Villeroy, foram mais fáceis. Um ano antes de eu começar a gravar, Bebeto achou rumo certo para “Teu Segredo”. Para ele mandei a melodia toda, alguns versos e vários pedaços e cacos de palavras. Ele, bondoso, montou a carpintaria. Ufa! Com Antonio, aconteceu de ele me mandar um e-mail com uma estrofe de cenas cortantes e insólitas e destas desvelei, aos poucos, a valsa “Àgora”. No entusiasmo, escrevi o restante da letra.
Mas e as outras? O samba ”Noite Vazou Encantada”, mesmo inconclusa, eu a experimentava nos shows. Dizia para as pessoas que ainda não estava pronta e pedia, mesmo assim, para elas cantarem a primeira parte. A segunda parte - prometia - vocês vão escutar no disco. Fiquei com medo desta promessa. Eu não alcançava terminá-la. A inspiração, às vezes, é um ferrolho rude, pensei. Daí que passei a fabular histórias e mais estórias para cada uma das canções. O garimpo era toda a casa com livros espalhados pelo chão, pelas mesas, pelos cantos, banheiro, cozinha, revistas, jornais, anotações, rabiscos, papéis aos nacos e mais os formigueiros dos dicionários. Uma formidável entropia a meu dispor, para omitir o termo bagunça. O computador, só ao final utilizei: recorta e cola, recorta e cola...
Para a desordem criativa, fiz uma pasta de cartolina para cada música, um artifício que inventei nos anos 70. 14 pastas. O título e o tom. Nestas, ia jogando tudo que eu via referente a cada canção. Pescava uma palavra num livro, num jornal, num texto alhures, num papo, num blog, na TV, no rádio, ia tomando nota e tudo parava nas pastas. Elas engordando e o calendário pegando fogo. Ainda havia um troço que me persegue nestas quadras, como o gosto da palavra, o malte da palavra, da carne/lascívia do fonema, da graxa da sílaba dita ou cantada e a plena fruição no encalço da intangível prosódia perfeita. Em febre, vejo, na folhinha, o dia da mixagem chegando. E as letras? Disse, para espanto do Agnaldo Paz, técnico de gravação: - vou mixar o disco sem as letras prontas. Depois coloco a voz sobre a mix finalizada. Ganhei mais duas semanas com isso. Mixava durante a madrugada e passava o dia no garimpo. Não havia padecimento: era inteiro de deleite. Claro que, pelo prazo do projeto estar se esgotando, eu sofria uns solavancos de culpa e de expiação.
Uns dois dias antes de gravar a voz final, enfim, havia terminado a coisa toda. Vou mentir se não disser do meu lápis que trabalhou até o derradeiro instante.
O resultado foi que as canções parecem feitas ontem. E foram."

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