quarta-feira, 21 de abril de 2010

Nelson Coelho de Castro fala sobre as canções de Lua Caiada




Na segunda parte da entrevista realizada com Nelson Coelho de Castro, ele fala sobre cada uma das 17 canções presentes no CD Lua Caiada:

Menino Não Sobe a Rua
"Conta a história de um sambista da antiga que tenta, em vão, advertir a um novato sobre a escolha entre o prazer e o sofrimento. Na realidade, receia que a história deste vá se repetir na do garoto que está prestes a entrar numa roda de samba (“eles vão te enfeitiçar”).
Antes, cheguei a pensar que, só para importunar, poderia ser também uma sacana advertência de um sambista para aqueles arredios e fóbicos ao samba, pois que se estes fossem ao batuque, de lá jamais voltariam (“quando o samba começa, meu nego, não dá para escapar”). Desisti. Era só uma história de pai pra filho.
Pedi ao Pedrinho Franco que realçasse na introdução do samba o acorde G7(13) no violão. Era para criar uma atmosfera de apreensão. Só depois, escutando bem, vi uns longes das quatro notas que abrem a quinta sinfonia do Beethoven: tan tan tan tan! São as batidas da sinistra na porta. Que coisa. Botei, sem querer, o Beethoven num samba. Entre outras performances, o trombone do Charão é o que é de arrepiar."

Samba Machucado
"Aqui, um passista de uma escola de samba fica cônscio de culpa, num arrependimento sem fim, se entrega ao desolamento. Ao avesso da maravilhosa “Atire a primeira pedra” - de Ataulfo Alves e Mário Lago, o passista, depois de desgostar seu amor - abdica até de pedir perdão.
Outra referência, que só fui observar bem agora quando o disco chegou, está nos verbos “machucar” e “desmonorar”. Eles constam na letra do samba “Pra Machucar Meu Coração” do Ari Barroso. Longe de qualquer insinuação de parentesco, fiquei apenas basbaque de feliz. Se topasse antes com isso, estaria no encarte do CD, como fiz com algumas outras músicas.
O pandeiro “sacana” de Giovani Berti, além de serenar a consternação do personagem, não deixa o samba ficar tão machucado assim, já que o “passista perdeu seu carnaval”. "

Dia da Festa
"Foi prazer cabal. A concepção rítmica que o Giovani Berti criou com Fernando do Ó para o cajón (aliás, dois, gravados simultaneamente) gerou um colóquio retumbante entre as madeiras. Os pulsos se provocam, revidam acentos e meandros candentes.
A letra conta uma história, sem borda, sobre personagens dum mínimo cafundó brasileiro no dia do seu aguardado folguedo principal. Um é dócil, outro sestroso, outro estrangeiro, outro escuta. A mulher bole com todos, como teria que ser. A festa, além sacralização do desejo, é a única salvação para os idílios do lugar.
A melodia que avança, recebe o sax sinuoso de Luizinho Santos na segunda parte. O piano, o baixo e os violões cultivam, junto da percussão, a tensão da história. Ao final, Edilson Ávila vai bordando frases de guitarra ao seu bel prazer."

Apela
"Este samba eu vinha fazendo sem açodamento. No início, brincava com os significados dos verbos “apelar” e “chamar” em português e francês. No show “Pérola no Veludo”, a Monica Tomasi solava no cavaquinho a melodia da segunda parte, pois carecia da letra.
O tema é mais do gênero impossível: o arrependimento surge quando não há mais o que fazer. O livramento solicitado, enfim, é o acaso que se encarrega: “Agora vá cuidar dos seus desalinhos, foi se enredar em outro destino”.
Um samba catimbado, cheio de síncopes. Convidei especialmente a Monica Tomasi para cantar a faixa comigo. Ela está muito bonita, como sempre, mandando ver em simpatia e doçura. "

Mulato Carmim
"Quando comecei a compor Mulato Carmim, me dei conta de uma grata recorrência. Foi a personagem de um sambista, que havia protagonizado os meus sambas Ele Vem de Manhã e Rapaz, do disco Verniz da Madrugada, de 1996, se querendo ali. Eu lhe disse: tá bem e logo me veio à cachola a idéia de fechar uma trilogia sobre o improvável homem cordial brasileiro, incensado ao delírio nestes referidos sambas. Para não ser tão onírico, traços verídicos desta persona encontro seguido por aí. Generoso e doido de estima, ele existe e existem tantos. Basta identificá-los. Eles têm a tarefa de equilibrar este nosso tempo: mesquinho e rude. Com “Mulato Carmim, então, encerraria a coisa. Mas, desta vez, o personagem, autônomo, foi além. Explico.
No repertório dos meus discos, quase sempre, havia uma canção mais contundente. Umas das últimas deste naipe foi Cachorro Chinês, que está no disco Da Pessoa, de 2001. Um catatau de versos abarrotados de flashes sobre a insana condição humana. Depois dessa, eu achava que a veia belicosa estava lá, em vacância, quieta no seu canto. Mesmo querendo revidar alguma tapa da realidade, nada existia deste cunho nas canções escolhidas para o novo CD. Mas não é que, sei lá como, logo o Mulato Carmim foi se incumbir disso.
Enquanto a melodia do samba abre-se meiga - e vai deste modo até o seu fim - a letra começa a deitar felpas esmeriladas mirando o arrogante, o avaro, a inveja, o empatador, a afetação, o poder, e foi sobrar até para o domínio da estrutura da linguagem, do discurso, tanto da academia quanto de outros estamentos. Que coisa. Deixei e folguei. A canção, de feição incisiva, desta vez, veio acre-doce e na manha.
Além das citações do Hino Brasileiro (Maciço o preto no lábaro que ostenta estrelado) e de “Aquarela do Brasil”, Ary Barroso, (A merencória luz da lua, beija), há outra alusão que, mais prazerosa ainda, se veio, arrematadora, parar na letra. Está no verso “Mulato Carmim você passa e não carrega embrulho”. “Não carrega embrulho”, surrupiei, afetivamente, do admirável samba “A Banca do Distinto”, autoria de Billy Blanco. Para quem não sabe da história desta canção: a música foi feita para a cantora Dolores Duran, na época namorada de Billy. Dolores contou-lhe a história de um bacana que frequentava seus shows no Beco das Garrafas, no Rio de Janeiro. De costas para o palco, o patife bebia uísque no balcão e ordenava canções. Nunca apertava a mão de negros. Nem carregava a marmita. O garçom levava-lhe a embalagem até o carro. Depois de ouvir o perfil, Billy desfiou o samba num desagravo: "Não fala com pobre, não dá mão a preto - Não carrega embrulho- Pra que tanta pose, doutor - Pra que esse orgulho..." Serviu como uma luva.
Quando Fernando do Ó escutou a melodia, logo me disse: vou colocar um vibrafone neste samba. Aí e com isso, ele elducorou de vez o desenho dos tamborins, a melodia passada a limpo pelo piano do Michel Dorfman e o soar das vassouras na caixa."

Lua Caiada
"Pensei, mais uma vez, como “Dia da Festa”, num remoto lugarejo praiano. A lascívia noite brasileira, o sopro morno da orla, a lua como ornamento e signo, seu halo no oleado do mar, sobre as ruas de pedras e o povo dançando sob este éter.
Logo senti a recordação quando da primeira vez que entrei numa casa de chão batido. Eu tinha 11 anos. A casa era caiada e o piso era um grafite, tão esmeradamente varrido. O fogão à lenha, a chaleira areada, duas cadeiras de madeira com assentos de palha trançada, uma criança com febre, a mulher magra e triste, uma pequena mesa e muito mais viria nesta recordação, além do cheiro úmido da casa que ainda está em mim.
A melodia da gaita, em três vozes, que no fim da música se insere, é de bem antes, 1971. Lembro bem de saber que um dia eu iria usá-la. Como é que pode isto se dar quase 40 anos depois? Dois grandes amigos, Gustavo Finkler e sua companheira Renata Mattar se mandaram de São Paulo, especialmente para gravarem, respectivamente, a viola e a gaita. Tudo ficou candente."

Marinho
"O vinho não é muito minha praia. Mas fico admirado com aqueles que, ao sorverem a bebida, depois de fungarem educadamente a borda do cálice, passam a parir frases aromáticas: este possui um traço de almiscar, um travo de grama cortada, notas de cerejas e tabaco, longes de frutos negros... e assim vai, uma maravilha de poesia.
Para compor “Marinho”, consumido de pejo, fui colhendo, até onde minha ignorância pode ver e arrumar, uns longes da canção maresia de Dorival Caymmi, o mesmo longes da música do oceano Villa Lobos, quase nadinha do rizoma metafísico de Guimarães Rosa.
Quando comecei a melodia, vi que estava “baixando” o seu Villa. Quando veio o verso “Zé Calo não quis nem buli”, sentia o seu Dori se aproximando. Noutro verso, “soubesse o medo que tenho deste vasto (mar) que abisma sem precisão”, eu pensei pronto: agora chegou o seu Rosa. E assim fui com esses três, tremendo de medo.
Faço MPB por instinto e quando me dou conta que consigo ficar, ainda que a infinitas léguas, lindeiro de suas gemas e de seu arco, resta-me quedar entre apoucado e feliz. "

Cadê
"Quase 40 anos depois, voltei a morar perto do bairro onde me criei em Porto Alegre. Um dia resolvi e me fui ao pretérito. Entre outras referências que ainda restavam - comecei a notar as ausências indeléveis de um armazém que ficava na esquina de casa, a falta de um cinamomo, o campinho de areão transformado num monstro de 15 andares e, ainda espiando, levar um baque ao escutar meu nome na voz de um amigo de infância ainda morador dali.E tudo foi tão especialmente vivo e bateu forte a noção do “sem tempo”. Eu não estava ali em busca do tempo perdido, pois deste quase nada extraviei.
Existem, ao longo da história do cancioneiro brasileiro, mil músicas a partir desse tema da recordação. Mas em “Cadê”, embora com a letra dobrada em lembranças intactas, o mais prazeroso foi me descobrir com a ludicidade destes signos. Por estes e com estes, evidentemente, nos tornamos o que somos. Seria outro, se na casa de meu avô não morassem os mistérios que só um porão e um sótão sabem guardar ou esconder. A quase angústia na pergunta “cadê”, no título, todavia, já estava respondida desde sempre.
Portoalegrense, deitei citações da cidade: ora os nomes das ruas nas formas reduzidas, ora personagens como o Professor Brilhante e sua boina, desenhando sob as marquises da Igreja do Rosário. A descoberta da cidade, ainda como infanto, e meu anseio de pertencimento para com ela ainda vibram.
O clarinete de Alexandre Rosa mostra um fraseado contínuo, como a fábula do tempo e seu eterno retorno."

Clara
"Não dá para não observar numa pessoa que acaba de receber uma boa nova. E ela nem saberia, se quisesse, dissimular. Seus poros, em arrepio, a trairiam.
Um verso rezado que se vai numa escala de semitons descendo rio abaixo até chegar ao mar da constatação. Foi isso que vi no rosto da minha irmã, que não se chama Clara.
Exercito-me atento ao milagre do prosaico, do lhano, e no demasiado humano quando os olhos nos olhos se vão dando."

Teu Segredo
"Como disse no texto que fala sobre as letras, foi um ano antes de eu começar a gravar que mandei para o Bebeto Alves a melodia toda do “Teu Segredo”. Na mesma remessa, foram pedaços de versos e vários cacos de palavras. Ele, rápido e bondoso, logo montou a carpintaria.
Pretendia contar a velha história da moça que nega o amor que deveras sente pelo amado. Queria também que os versos fossem diretos, simples, com as rimas a partir do infinitivo dos verbos: estrelar, revelar, derramar, tudo pulsando de ardor, e na delicadeza, solicitando à paixão, a felicidade de “se deixar”...
No início era uma balada, mas pedi uma levada de samba para as congas e os vasos de cerâmica de Giovani Berti e do Fernando do Ó. Eles se puxaram mais uma vez.
Onde eu gravei havia dois estúdios. Uma tarde, quando colocava voz final nesta faixa, fui até a sala do café e escutei um músico, que não conhecia, ensaiando para outro disco. Ele executava uma peça difícil na gaita. Na volta, falei para o técnico Aguinaldo Paz: quem é aquele cara que tá lá no café tocando? É o Luizinho Correa, respondeu. Devolvi de pronto: será que ele toparia colocar umas frases nessa minha música? Deixa comigo, respondeu Aguina e foi saindo. Daqui a pouco chega o Luizinho, super sorridente, com a gaita ainda nos ombros. Eu tinha um contracanto para a segunda parte e ele gravou num único take. Meu Deus! Bom, eu disse: agora faça o que quiser que tá tudo maravilhoso! Uma sincronia daquelas."

Clau
"Pungente, esta melodia me tomou, assim no mais, quando eu via um filme na TV. Peguei o violão e “tirei” a música, nota por nota, ainda fresca, com medo de esquecer. Pensei encomendar um arranjo para um quarteto de cordas, mas não deu tempo e a grana do projeto já estava comprometida. Ainda penso fazer isso no futuro. Mas o piano do Michel Dorfman, mais uma vez, se encarregou lindamente disso.
Por pouco não levou o nome de “Sodade” ou “Primeira Sodade”. Virou Clau, pois a saudade era dela."

Esse Amor
"A melodia desta canção, como muita das outras, ficou sem letra durante uns três anos. Todo o dia ela surgia na cabeça e eu a assobiava em casa, na rua ou quando pegava o violão. Mesmo sem letra, cantava em alguns saraus. Uma perseguição das “buenas”.
Ficou na manha e solar, quase um samba bossa/canção. É uma doida declaração de amor, doida de não se atar, pois que não suporta mais sentir o desejo pulsar à demasia e o escancara em tripas e coração.
A frase que compus para a introdução pensava que soaria bem se fosse por um violão com cordas de aço. Aí, no estúdio, o Michel Dorfman me disse que tinha sido presenteado com uma escaleta novinha em folha...
O Mario Carvalho, primeiro gravou um baixo elétrico. Uma semana depois, chegou ele no estúdio, com uma cara de sem vergonha, tirou um cd da bolsa e me disse: gravei um baixo acústico em casa. Ficou demais. E ficou."

Ágora
"O Antonio Villeroy estava no estrangeiro, como dizia minha tia, acho que em Nova York, e de lá me envia um e-mail com versos cítricos, severos e poéticos. O escopo do parceiro era que começássemos, incitando-nos, a compor um novo repertório para o disco ou espetáculo “Juntos”, que reúne, além de nós dois, mais o Bebeto Alves e o Gelson Oliveira.
Na tela do computador, li os versos “somos homens bípedes com polegar aptos a... ...nossas vozes querem mais do que arranhar...” assim mesmo, sem mais nada, como se lançasse uma bola ao futuro. Ainda ali, sem perceber, fui desvelando a melodia que já estava soando pela métrica. Uma valsa.
Uma praça árida, ocre, sol a pino, a urbes, a espécie humana e o nada. Esse era o filme que me passava na cachola. Eu estava lendo alguma coisa de filosofia na época e a brincadeira com agora e ágora (praça) era o cenário/tempo para falar em nós, os “Juntos”, metidos nesta contemporaneidade maluca, neste “devir” maluco. Aconteceu do disco “Juntos” ser adiado, por conta dos projetos individuais dos quatro amigos. Mas a valsa estava lá comigo, quentinha. Quer saber: vou gravar.
O bandolim, ao esmero, do jovem Pedrinho Franco, sola a valsa inteira. É legítima a felicidade de escutá-lo."

Sábado de Manhã (para Mariana e Nicholas)
"Sábado de manhã, pra mim, é a concessão do vadiar, do ócio. No entanto, é um período circunscrito. Começa cedinho e vai, no máximo, até duas da tarde. Depois disso, na demasia da metáfora, já é domingo. Então, é neste âmbito de poucas horas que fico a perambular sem culpa por ruas que não conheço. Dobro ali, acolá, faço uma fezinha na loteca, e deixo-me, pelas onze, numa meia taça de café preto e um pastel. Se estiver com o Nicholas (meu filho de oito anos) vamos à pracinha, como ia com a irmã Mariana (que está com 22). E mais nem sei, por não saber mesmo.
O chorinho “Sábado de Manhã” veio neste clima. Proponho ou arrisco um convite: coloque esta faixa no tocador de Cd para “escutar” no seu próximo sábado de manhã, se possível, antes das 14hs."

No Cacho
"Fazendo a letra, lembrei do Lupi, que chamava seus amigos de “meu camaradinha”. Um diminutivo afetuoso, de estima sem par, inda mais naquela sua voz serena. Usei essa expressão e uma cena do samba canção “Quem há de dizer”, dele e do Alcides Gonçalves: “repare bem que quando ela fala, ilumina mais a sala do que a luz do refletor”. Em “No Cacho”, o mesmo sentido eu pretendi emprestar. O realce da moça possuída de esplendor, mistério e desejo. Já o personagem que fala, está morrendo de medo, na angústia de tirar ou não a moça pra dançar. Morreria no brejo, se não fosse, sob resgate derradeiro, salvo pela diva habitué da gafieira. Por pouco não batizo o samba de “Consolação”."

Clemente
“Eu vou na catega”. Quando um moleque, lá na minha rua, ao devolver um simples passe agregava algum ornamento - ou de calcanhar ou de letra – dizia-se que ele era cheio de “catega”.
O samba de roda baiano, samba chula, o samba de partido alto são a própria “catega” brasileira. "

Noite Vazou Encantada
"Este samba também faz parte do rol de músicas que ficaram sem letras por um bom período. Cantava nos shows, como disse noutro texto, mesmo sem ele estar pronto. Queria “experimentar” o refrão com a platéia. Muitas vezes, na manha, ela cantava comigo. Por isso, ao gravar, convidei um “bando” de amigos para fazer o coro do refrão. Foi emocionante ver, um por um deles, chegando no estúdio. Depois, ao fazerem um semi-círculo diante dos microfones e, mais ainda, quando mandaram ver: pura estima."

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